Epístolas Microcosmológicas

Parte da produção artística de Mario Massena coloca-se essencialmente por um lado, pela sua constante prática do desenho e da pintura, por outro, pela utilização de distintos suportes que incluem madeira, resíduos naturais e industriais, papel reciclado, cerâmica, entre outros. Em "Cartas para Gaya"o artista se apropria de chapas metálicas descartadas em que restos de antigas pinturas e oxidações são valorizadas e passam a dialogar com inserções de signos , imagens e palavras, no esforço para construir um discurso que faça algum sentido, seja pela ótica do mito, da cultura popular ou do cientificismo. Para o artista sua produção atual é uma tentativa de levar a sério os discursos correntes sobre " o fim do mundo", tomando-os como experiências de pensamento estético nessa aventura antropológica global para o declínio, isto é como um exercício de invenção poética, não necessariamente deliberada, de uma mitologia adequada ao presente.
Rogério Spanzelli, Rio, 2020



CARTAS PARA GAYA -2020

CARTAS PARA GAYA -2020

VISÃO EDÊNICA

Na primavera de 1958 o jornalista, sociólogo e historiador Sergio Buarque de Holanda apresenta sob o titulo "Visão do Paraíso", sua tese ao concurso para o corpo docente da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. O objetivo central de seu trabalho trata da analise das narrativas míticas acerca do jardim do éden, os mitos edênicos, que acompanharam as descrições do descobrimento e colonização das Américas. A atualidade desse clássico se dá por um lado, por se tratar de um marco na historiografia, já que apresenta ao público brasileiro uma perspectiva inédita de entendimento histórico dentro das mentalidades que se estruturam a longo prazo nas sociedades, por outro, a dimensão literária de sua escrita, ao convocar poetas e ficcionistas de todos os tempos, construindo uma narrativa em que o método teórico se flexiona para dentro do texto, ou como o intelectual Antonio Cândido disse,"uma admirável metodologia dos contrários". Nesse sentido Sergio Buarque de Holanda é hoje reconhecido pelo seu imenso conhecimento crítico e, sobretudo transdisciplinar, grande interprete de nossa cultura e sociedade, na sua dimensão histórica, temporal e universal, oferendo sua "Visão do Paraíso", obra aberta e multifacetada, a novos diálogos e infindáveis releituras. O mergulho na tese do intelectual paulista, proporcionou a Mario Massena a construção de sua própria representação do paraíso, como exercício de deslocamento do significado de sua produção para além da materialidade do objeto artístico, ou seja, busca transcender um nexo estritamente formal de seu artefato pictórico e poético, ancorando sua construção na textualidade da dissertação acadêmica. Segundo Arthur Danto,(2006,p.14), a contemporaneidade oferece criações que emergem de distintos âmbitos, dando razão e sentido ao fazer artístico, permitindo uma leitura da obra para além de seus formalismos. Para o filosofo a essência da arte é histórica, a relatividade esta somente na sua produção e fruição, em cada momento e contexto com toda sua singularidade.
Rogério Spanzelli, S.Pedro da Serra, 2019.

VISÃO DO PARAÍSO - 2019 - 220cm x 150cm

VISÃO DO PARAÍSO  -  2019  -  220cm x 150cm

NATUREZA E CULTURA

A palavra Tupy-Guarani Boyúna, significa cobra grande, pertinente aos mitos ameríndios amazônicos, referência a uma criatura gigante e poderosa, protetora das águas profundas dos rios e igarapés, uma Mãe d'água com poderes de metamorfosear-se de modo sagrado e magico. Ao lidar com a representação mitológica utilizando materiais industriais como a resina branca, e naturais, nas seções em madeira de cedro, o artista exercita a questão das categorias "natureza e cultura", que por um lado pode ser vista como uma oposição universal, mas por outro, como uma oposição nem natural nem cultural: uma antinomia que faz a passagem da natureza à cultura. E é o antropólogo Lévy-Strauss que nos mostra em sua obra "Mitológicas", como essa passagem é estreita e precária, ambígua e marcada por uma nostalgia do contínuo. Lévy-Strauss considera que a chegada dos europeus as Américas foi uma catástrofe irreparável e que as culturas nativas foram feridas de morte. Para ele, a destruição da América indígena a partir do seculo XVI foi uma espécie de ensaio geral para a destruição, ora em curso, do planeta pela civilização ocidental. Esse narcisismo etnocêntrico que é nossa perdição cósmica, esconde que o mito é uma história do tempo que os homens se comunicavam com o mundo visível e com aquele que não vemos.

Rogério Spanzelli, Paraty, 2018

BOYÚNA BRANCA - 2018

BOYÚNA BRANCA - 2018


Vênus Ad Infinitum

Em Vênus (2018) encontramos na redução da forma artística a gênese de um volume geométrico sucinto,''minimal'' , um objeto que evita nossa contemplação, porém, olha para si mesmo, comunicando para nós sua presença. Os elementos seriados, organizados precisamente, desencadeiam um movimento para o infinito, repetição em vertigem ótica. Nessa estrutura síntese, materialidade e volume encontram a potência primária círculo-losango, corpo para ancoragem poética de uma situação espaço visual concreta.

Rogerio Spanzelli, 2018.

VÊNUS - 2018

VÊNUS - 2018

A JACA E O TATU

A questão chave da cultura contemporânea diz respeito a problemática linguística, já que a linguagem não sendo mais um campo unificador ou uma síntese das disciplinas que formariam esse território único, acaba por constituir- se ela mesma, em uma disciplina singular e autônoma. A arte de hoje se enuncia e se problematiza com os meios da arte e não da linguagem. Fazer arte não significa apenas intuir, conhecer, contemplar, mas , produzir, realizar,fazer no sentido de concretizar um objeto real, físico , material ( Pareyson, 1989). Na produção de Mario Massena coexistem a figuração interior , a operação executiva e o jogo semântico sem que haja uma sucessão temporal ou a contraposição desses impulsos. Para o artista toda fruição desse fazer se dá na harmonia formal, na sua aderência à finalidade que essa práxis é em si mesma, independentemente de suas formas ou de seus materiais e suportes. Na obra " Jacatatu" esses atributos encontram-se no título e na realidade física da obra e não em algo que a transcenda, já que sua propria existência é o seu significado, ou seja, espiritualidade e materialidade coincidem plenamente.
Rogerio Spanzelli, Rio, 2017

"JACATATU" - Madeiras diversas - 2017- Coleção Oney Barroso

"JACATATU" - Madeiras diversas - 2017- Coleção Oney Barroso

" Metálikas" Resíduos metálicos- 2016

" Metálikas" Resíduos metálicos- 2016

"Metálikas" Resíduos metálicos- 2015

"Metálikas" Resíduos metálicos- 2015

" Metálikas" - Resíduos metálicos- 2015

" Metálikas" - Resíduos metálicos- 2015

Exposição Individual Galeria Energisa - 2015

Exposição Individual Galeria Energisa - 2015

Detalhe escultura "Seraphis" - Bronze e residuos metalicos- 2016

Detalhe escultura "Seraphis" - Bronze e residuos metalicos- 2016

"Fragmento Contínuo" - Técnica mista sobre papel- 2016

"Fragmento Contínuo" - Técnica mista sobre papel- 2016

Detalhe "Fragmento Contínuo"- 2016

Detalhe "Fragmento Contínuo"- 2016


" ZenSex"- Velas, parafina, papel e madeira- 2015

" ZenSex"- Velas, parafina, papel e madeira- 2015

Detalhe " ZenSex" - 2015

Detalhe " ZenSex" - 2015

" Jardim Iluminista" Monotipia e pintura acrílica sobre lona- 340cm x 140cm- 2015

" Jardim Iluminista" Monotipia e pintura acrílica sobre lona- 340cm x 140cm- 2015
Coleção Particular - Rio de Janeiro

" Mémoria e Fado "- Técnica Mista sobre papel- 2010- Coleção Particular Niterói - RJ

" Mémoria e Fado "- Técnica Mista sobre papel- 2010- Coleção Particular Niterói - RJ

' Big Bang" - Resíduos de madeira- 2010

' Big Bang" - Resíduos de madeira- 2010

Exposição Individual "Sincronicidade"- 2008

Exposição Individual "Sincronicidade"- 2008



" Instante extraordinário"

Caminhando no sentido de uma constante process-art, Mario Massena propõe em Itacaré (2012) uma íntima relação entre matéria, tempo e espaço. Marcando nesse objeto efêmero sua atração pelo diálogo possível entre resíduos naturais e industriais, o artista aponta no próprio título da obra uma referência espacial, no caso um determinado ponto no litoral sul da Bahia, acentuando os aspectos fenomenológicos de sua poética de detritos e materiais dispensáveis. Nesse produto do encontro mágico do olhar com o próprio achado, Massena reafirma em sua produção, aquela multivalência temporal que o fenômeno artístico envolve, a coordenada fundamental apontada por Merleau-Ponti, o que é permanente no impulso do anônimo pintor rupestre do paleolítico e no artista contemporâneo: diálogo intersubjetivo do homem consigo mesmo e com o mundo.

Rogerio Spanzelli, Curitiba, 2012

itacaré

itacaré

" Sincronicidade"- 2008

" Sincronicidade"- 2008
ÓRBITA EM FRAGMENTOS
Rogério Spanzelli

Identificar uma trajetória na produção artística de Mario Massena, se constitui uma ambígua tarefa: a própria práxis do artista se articula em orientar fragmentações ora de formas conexas, nas acumulações de elementos similares que se organizam no vislumbre de um entendimento de totalidade, ora de maneiras aparentemente desconexas, em que a leitura dos resultados só é possível na percepção de um sentido de complementariedade. Nessa perspectiva em que o fragmento pode ser um símbolo, com sua narrativa imanente, mas as vezes um signo, com sua qualidade originária dentro de uma serialidade, o artista nunca opta por uma abordagem puramente construtiva, elaborada como uma síntese dentro de uma organização formal totalmente inventada, em que o resultado da obra confunde-se com sua própria estrutura; mas antes e sempre, dentro de um ideário de process-art ,não só pelo emprego de materiais precários, naturais ou industriais, mas também pela aproximação com o paradigma indiciário¹, estabelecendo com seu processo artístico um caráter de criação mental.
Um itinerário pode ser identificado a partir da década de 80,nas primeiras experiências pictóricas, claramente influenciadas pela Transvanguarda. Realiza uma pintura sem direções pré-constituídas, ambientada com ecletismos, numa combinação de drama e informalidades,escorregando para abstrações ou revalorizando o desenho. Suportes precários e improvisados muitas vezes são determinantes no resultado das obras desse período.
Sua transferência para Ouro Preto em inicios da década de 90, onde residirá até a virada do século, e onde fará sua formação em Conservação e Restauração de Bens Culturais, junto a Fundação de Arte de Ouro Preto, estabelece uma inevitável aproximação com o universo da estética barroca, que será visível em suas consequentes produções. Essa aproximação, entretanto, não se fará dentro dos discursos que pontuam essa estética, nem no sentido de presentificar esse passado e seu imaginário. Tampouco se apropriará de suas narrativas e as deslocará de seu tempo/mentalidade, reconfigurando-as em nossa temporalidade. É nos resíduos, nos fragmentos dos incontáveis elementos artísticos da cidade histórica, que Massena, com olhar prospectivo, promoverá sua leitura: da produção de uma época e seus desgastes, das descaracterizações e mutilações que a passagem do tempo e o uso, acarretam às coisas. Documenta amostras e registra em centenas de anotações e esboços², aquilo que sua sensibilidade considera válido como objeto de estudo, sem preocupações em estabelecer significados e correspondências, sem compromisso em buscar sentidos e ordenações , mas, pela relação que esses indícios do passado inferem em nosso tempo. Estabelece assim, um dialogo entre matéria e memória, das coisas produzidas por nós mas que nos causam em determinados momentos estranhamento, desses micro-significados que nada significam, e que só sobrevivem, no âmbito das poéticas existenciais. Seguindo nessa vertente de uma "arte povera" , intervindo ou não nesses véstigios encontrados, buscando uma lógica que só pode ser alcançada por meio de um procedimento artístico, a matéria permanece aquilo que é, mas ultrapassa seu valor mínimo alcançando um valor máximo,” é portanto antítese da matéria sem deixar de ser matéria”³. Muitas vezes carboniza materiais, estabelecendo na sublimação pelo fogo, uma fenomenologia dos vestígios e resíduos, revelando a condição de um existir efêmero, condição inerente a vida. Outras vezes se apropria de materiais funéreos, recolhidos em cemitérios, espaço simbólico da morte, com sentido de dar-lhes vida, ainda que breve.
Caminhando na contra-mão de uma sociedade, onde o fazer é tecnológico e industrial, e a lógica , a funcionalidade e o descarte, Massena articula em seu fazer artesanal, coisas duradouras ou não, que só fazem sentido como simbologias de uma existencialidade. Dessa maneira , não evita os símbolos que podem emergir e superar a própria matéria. Seu processo de construção tambem em constante processo, estabelece narrativas sem temporalidade, ou de temporalidades difusas. Conjugando materiais cuja disponibilidade muitas vezes é ilimitada, estabelece com suas metamorfoses possíveis, uma dinâmica particular, uma identificação de continuidade essencial, um fragmento de sua realidade refletindo nossa existência fragmentária.



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¹ Segundo Ginzburg “a partir de dados aparentemente irrelevantes descrever uma realidade complexa.”
²Esses esboços e anotações foram reunidos pelo artista em 2010 na obra Fragmento Contínuo.
³Argan, Arte Moderna, p.547